quinta-feira, 22 de março de 2012

Despedidas em Belém (C. IV, 83 – 93)


             As primeiras dificuldades vão surgir aquando da despedida das naus na praia do Restelo. Trata-se de dificuldades de natureza emocional, afetiva.
             A construção desta cena é feita principalmente através da alternância de planos: desde o plano de conjunto inicial («as gentes [...] por perdidos nos julgavam») aos planos de pormenor («as mulheres [...] os homens») ou mesmo aos grandes planos («Qual vai dizendo [...] Qual em cabelo»). Termina com novo plano de conjunto, na estrofe 92, e com a narração que se passava a bordo.
             A consternação era geral na cidade e a bordo: tinha-se a noção dos perigos, de que o caminho era «tão longo e duvidoso», de que, muito provavelmente, os que partiam não iriam regressar. Deste clima de consternação davam conta as mulheres «cum choro piadoso» e os homens «com suspiros que arrancavam». Particularmente débeis eram, contudo, as mulheres: «Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso/Amor mais desconfia acrecentavam/A desesperação e frio medo/De já nos não tornar a ver tão cedo».


            Surgem, então, como a comprová-lo, dois grandes planos, com as palavras de uma Mãe e de uma Esposa, personagens coletivas, dadas em discurso direto.
            A Mãe que nos fala na estrofe 90 é o símbolo da velhice que se abandona, em troca de uma morte mais que certa no mar. Daí que as suas palavras sejam de incompreensão e de perplexidade, dada pelas interrogações angustiadas que ficam no ar, sem resposta. Repare-se nas sonoridades suaves em i (vogal doce), contrastando, depois, com a dureza das sonoridades em vogal aberta a – assonâncias.
            O mesmo discurso dorido, perplexo, interrogativo é a tónica das palavras da Esposa, na estrofe 91. Esta Esposa interroga, queixa-se e de certo modo, censura e acusa. A adjetivação é extremamente expressiva: «doce e amado esposo»; o amor é reafirmado como «vão contentamento», «sem quem não quis amor que viver possa», «afeição tão doce nossa» (veja-se a doçura destas aliterações em s).
            Aquele que parte não tem o direito de o fazer, pois aventura algo que lhe não é pertença privada, «essa vida que é minha e não é vossa». Ainda no capítulo das sonoridades, repare-se nas aliterações e rima interna do último verso: «Quereis que com as velas leve o vento?».
            Trata-se de algumas das mais belas palavras de amor jamais escritas, sobretudo tendo em conta que se trata de amor conjugal, raramente tratado na nossa tradição lírica ocidental.
            Após estes dois grandes planos, retoma-se na estrofe 92 a visão de conjunto: frágeis são os que ficam, mães, esposas, irmãs, mas também os velhos e os meninos. A própria natureza se comove e se associa numa dor à escala cósmica.
            Aos que partem só resta uma saída: partir depressa, sem o «despedimento costumado». 

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