Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia”
Metas
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Linguagem, estilo e estrutura:
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Solidão e
convivialidade.
Caracterização
das personagens.
Relação
entre elas.
Caracterização do espaço: físico, psicológico e sociopolítico.
Importância
das peripécias inicial e final.
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O conto: unidade de ação;
brevidade narrativa; concentração
de tempo e espaço; número limitado de personagens;
A estrutura da obra;
Discurso direto e indireto;
Recursos
expressivos.
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António Barrasquinho, o
Batola, é um tipo bem achado. Não faz nada, levanta-se quando calha, e ainda vem dormindo lá
dos fundos da casa.
É a mulher quem abre a venda e
avia aquela meia dúzia de fregueses de todas as manhãzinhas. Feito isto, volta à lida da casa. Muito alta, grave, um rosto ossudo e um sossego de maneiras que se vê logo que é ela quem ali
põe e dispõe.
Pois quando entra para os fundos da casa, vem saindo o Batola
com a cara redonda amarfanhada num bocejo. Que pessoas tão
diferentes! Ele quase lhe não chega ao
ombro, atarracado, as pernas arqueadas. De chapeirão caído para a nuca, lenço
vermelho amarrado ao pescoço, vem tropeçando nos caixotes até que lá consegue encostar-se
ao umbral da porta. Fica assim um pedaço, a oscilar o
corpo,
enquanto vai passando as mãos pela cara, como que para afastar os restos do
sono. Os olhos, semicerrados, abrem-se-lhe um pouco
mais para os campos. Mas fecha-os logo, diante daquela monotonia desolada.
Dá meia volta, enche a medida com o melhor
vinho que há
na venda, coloca-a sobre o balcão. Ao lado, um copo. Puxa o caixote, senta-se e começa a beber a pequenos goles. De quando em quando, cospe por cima do balcão para a terra negra que faz de pavimento.
Enterra o queixo nas mãos grossas e, de cotovelo vincado na
tábua, para ali fica com um olhar mortiço.
Às vezes, um rapazito entra na venda:
– Tio Batola, cinco tostões de café.
O chapeirão redondo
volta-se, vagaroso:
– Hã?... – Cinco tostões
de café!
Batola demora os olhos na
portinha que dá para os fundos da casa. Mas é inútil esperar mais. “Ah, se a
mulher não vem aviar o rapazito é porque não quer, pois está a ouvir muito
bem o que se passa ali na loja!” Quando se assegura que é esta e não outra a
verdade dos factos, Batola tem de levantar-se. Espreguiça-se, boceja, e arrasta-se até à
caixa de lata enferrujada. Mede o café a olho, um olho cheio de
tédio, caído sobre o canudinho de papel.
Volta a encher o copo,
atira-se para cima do caixote. E, no jeito que lhe fica depois de vazar vinho
goela abaixo, num movimento brusco, e de ter cuspido com uns longes de raiva,
parece que acaba de se vingar de alguém.
Tais momentos de ira são
pedaços de revolta
passiva contra a mulher. É uma longa luta, esta. A raiva do Batola
demora muito, cresce com o tempo, dura anos. Ela, silenciosa e distante, como se em
nada reparasse, vai-lhe trocando as voltas. Desfaz compras, encomendas,
negócios. Tudo vem a fazer-se como ela entende que deve ser feito. E assim
tem governado a casa.
Batola vai ruminando a
revolta sentado pelos caixotes. Chegam ocasiões em que nem pode encará-la.
De olhos baixos, põe-se a beber de manhã à noite, solitário como um desgraçado.
O fim daquelas crises tem dado que falar: já muitas vezes, de há trinta anos
para cá, aconteceu a gente da aldeia ouvir gritos aflitivos para os lados da
venda. Era
o Batola, bêbado, a espancar a mulher.
Tirando isto, a vida do
Batola é uma sonolência pegada. Agora, para ali está, diante do
copo, matando o tempo com longos bocejos. No estio, então, o sol faz os dias do
tamanho de meses. Sequer à noite virá alguém à venda palestrar um
bocado. É sempre o mesmo. Os homens chegam com a noitinha, cansados da faina.
Vão direito a casa e daí a pouco toda a aldeia dorme.
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1º momento – Solidão – vida monótona e
triste dos habitantes de Alcaria. Durante o dia, os homens trabalham e à noite
dirigem-se para suas casas e dormem. Batola passa o dia sentado à espera de
atender os poucos fregueses que se deslocam à sua venda.
Batola
Mulher do Batola
Rata, amigo
de Batola
Relação entre Batola e a mulher – relacionamento
conflituoso: ela é ativa e dominadora quando tem de tomar decisões, já ele
ostenta uma postura passiva, porém, quando está ébrio, é violento.
Batola sente-se inferiorizado em relação à mulher,
já que é ela quem gere a casa e o negócio, o que lhe provoca uma revolta
interior (por esse motivo é que já a agrediu).
Tempo psicológico – a solidão de Alcaria faz com que o tempo
passe devagar.
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Está nestes pensamentos o
Batola quando,
de súbito, lhe vem à ideia o velho Rata. Que belo companheiro! Pedia de
monte a monte, chegava a ir a Ourique, a Castro, à Messejana. Até fora a Beja.
Voltava cheio de novidades. Durante tardes inteiras, só de ouvi-lo
parecia ao Batola que andava a viajar por todo aquele mundo.
Mas o velho Rata matara-se. Na
aldeia, ninguém
ainda atina ao certo com a razão que levou o mendigo a suicidar-se.
Nos
últimos tempos, o reumatismo tolhera-lhe as pernas, amarrando-o à porta do
casebre. De quando em quando, o Batola matava-lhe a fome;
mas nem trocavam uma palavra. Que sabia agora o Rata? Nada. Encostado à parede
de pernas estendidas, errava o olhar enevoado pelos longes. Veio o
verão com os dias enormes, a miséria cresceu. Uma tarde, lá se
arrastou como pôde e atirou-se para dentro do pego da ribeira da Alcaria.
Aos poucos o tempo apagou a lembrança do Rata, o
mendigo. Só o Batola o recorda lá de vez em quando.
Mas, agora, abandonou a recordação e o vinho, e vai até ao almoço. Nunca bebe
durante as refeições.
Depois, o sol desanda
para trás da casa. Começa a acercar-se a tardinha. Batola, que acaba de
dormir a sesta, já pode vir sentar-se, cá fora, no banco que corre
ao longo da parede. A seus pés, passa o velho caminho que vem de Ourique e
continua para o sul. Por cima, cruzam os fios da eletricidade que vão para
Valmurado, uma tomada de corrente cai dos fios e entra, junto das telhas,
para dentro da venda.
E o Batola, por mais que
não queira, tem de olhar todos os dias o mesmo: aí umas quinze
casinhas desgarradas e nuas; algumas só mostram o telhado escuro,
de sumidas que estão no fundo dos córregos. Depois disso, para qualquer parte
que volte os olhos, estende-se a solidão dos campos. E o silêncio. Um
silêncio que caiu, estiraçado por vales e cabeços, e que dorme profundamente.
Oh, que despropósito de plainos sem fim, todos de roda da aldeia, e desertos!
Carregado de tristeza, o entardecer demora anos. A noite vem de longe, cansada, tomba tão vagarosamente que
o mundo parece que vai ficar para sempre naquela magoada
penumbra.
Lá vêm figurinhas dobradas pelos
atalhos,
direito às casas tresmalhadas da aldeia. Nenhuma virá
até à venda falar um bocado, desviar a atenção daquele poente dolorido. São ceifeiros, exaustos da faina, que recolhem. Breve, a
aldeia ficará adormecida, afundada nas trevas. E António Barrasquinho, o
Batola, não tem ninguém para conversar, não tem nada
que fazer. Está preso e apagado no silêncio que o cerca.
Ergue-se pesadamente do banco. Olha uma última vez para a
noite derramada. Leva as mãos à cara, esfrega-a, amachucando o nariz, os
olhos. Fecha os punhos, começa a esticar os braços. E abre a boca num bocejo tão fundo, o corpo torcido numa tal
ansiedade, que parece que todo ele se vai despegar aos bocados. Um suspiro
estrangulado sai-lhe das entranhas e engrossa até se alongar, como um uivo de
animal solitário.
Quando consegue dominar-se, entra na venda, arrastando os pés. E, sem pressentir que aquela
noite é a véspera de um extraordinário acontecimento, lá se vai deitar o Batola,
derrotado por mais um dia.
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Espaço psicológico – a recordação que Batola faz do seu amigo
Rata concretiza uma marca de espaço psicológico. O mendigo recordado por
Batola era aquele que, por sair da aldeia, lhe trazia novidades, trazendo alguma
alegria ao protagonista, o que comprova o seu apreço pela liberdade e mundo
exterior. Esta aldeia faz com que Batola se sinta solitário, isolado de tudo,
já que não estabelece convivência com os outros habitantes da aldeia
Espaço físico – pequena aldeia no baixo Alentejo, onde há poucas pessoas
Hipálage
Personificação
Espaço sociopolítico – espaço socialmente e economicamente deprimido.
Os homens trabalham na agricultura (trabalho árduo) e a venda de Batola não é muito frequentada. Situação
de miséria, vida precária que oprime os pequenos camponeses
Narrador que conhece o futuro (focalização omnisciente)
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De facto, na tarde seguinte apareceu
uma nuvenzinha de poeira para as bandas do sul: ouvia-se ronronar um motor.
Pouco depois, o carro parou à porta da venda. Fazia anos que tal se não dava
na aldeia. Pelas portas, apareceram mulheres e crianças.
Dois homens saíram do carro. Um deles trazia fato de ganga, o
outro, bem vestido, adiantou-se até à porta:
– Não nos pode dispensar uma
bilha de água?
Batola, daí a pouco, sai com a infusa a escorrer. O do fato de
ganga, que havia tirado a tampazinha da frente do carro, pôs-se a deitar a
água para dentro. Enquanto isto acontece, o sujeito bem vestido dá uma mirada
pela aldeia, pelos campos. Sopra, afogueado:
– Que sítio!...
Mas ao ver os fios da eletricidade e a ligação que entra junto
das telhas da casa, olha para o Batola com atenção,
medindo-o de alto a baixo. Entra na venda, põe-se a observar as prateleiras.
O exame parece agradar-lhe. Volta-se, sorridente, para o Batola, que lhe
segue, desconfiado, todos os movimentos:
– Tem cerveja?
– Ná. Só vinho...
– Traga o vinho.
Muito instado, Batola bebe também. E aqui começa
uma conversa que ele não entende. Só percebe, e isso agrada-lhe, que o homem
é simpático e franco. Mas agora há uma pergunta a que tem de responder:
- Não, senhor...
O sujeito vai à porta, e diz para o motorista:
– Calcinhas, traz aí uma caixa do modelo pequeno.
A caixa é colocada sobre o balcão. De dentro sai uma outra
caixa, mas de madeira polida. Ao meio tem um retângulo azul, cheio de letras
e, em baixo, ao comprido, quatro grandes botões negros.
– Não tem uma tomada?
Em face da resposta, o homem vai ao automóvel. Volta e sobe ao
balcão. Tira a lâmpada, enrosca aí a tomada, puxa o fio que sai da caixa,
liga-o, e salta para o chão. Só nesse momento o Batola compreende. A
princípio, apenas saem ruídos ásperos da caixinha, mas, aos poucos,
desaparecem. Vem então uma música modulada, grave.
– Hem? Que tal?
Esfregando as mãos, começa a
enumerar rapidamente as qualidades de um tal aparelho:
– É o último modelo chegado
ao país. Quando se quer, é música toda a noite e todo o dia. Ou então
canções. E fados e guitarradas! Notícias de todo o mundo, desde manhã até à
noite, notícias da guerra!...
Aponta para o retângulo azul:
– Olhe, aqui, é Londres;
aqui, a Alemanha; aqui, a América. É simples: vai-se rodando este botãozinho...
Poisa a mão sobre o ombro do Batola, e exclama:
– Dou-lhe a minha palavra de
honra que não encontram nenhum aparelho pelo preço deste!
Sem dar tempo a qualquer resposta, ordena:
– Traz a pasta, Calcinhas!
Vem a pasta. Batola, aturdido, olha para os papéis de várias
cores que vão aparecendo sobre o balcão. A música, vibrante, enche a venda,
ressoa pelos campos.
– Aqui é Londres, hem! –
grita o homem. – O senhor sabe ler? Então leia aqui!
Mostra os papéis, gesticula
e sorri, sorri sempre. Batola coça o queixo com os dedos grossos. Olha as contas
que o outro lhe mostra, olha de soslaio para a mulher. Volta a coçar-se. E
tudo isto se repete durante uma longa hora.
Batola, por fim, cabisbaixo, emudece, como
que vencido.
Rapidamente, o vendedor preenche, sobre o balcão, um largo
impresso e, depois, doze letras. São as prestações. Dá a caneta ao Batola que se põe a assinar penosamente papelinho a papelinho. Está quase a acabar a
difícil tarefa quando a mulher o interrompe, numa
voz lenta e carregada:
– António, tu não compras isso.
Então, inicia-se uma luta entre o
vendedor e a mulher. Mas as frases e o sorriso do
homem bem vestido não surtem agora o mesmo efeito: vão-se sumindo, sem
remédio, diante daquele rosto ossudo e decidido.
Ali, só há uma palavra:
– Não.
A cara redonda do Batola
começa a encher-se de fundas rugas. Num repente, pega na caneta e assina o
resto das letras:
– Pronto! Quem manda sou eu!
Os olhos da mulher
trespassam-no.
Volta o rosto pálido para o vendedor de telefonias, torna a voltar-se
para o marido. Por momentos, parece alheada de tudo
quanto a cerca. Vagarosa, no tom de quem acaba de tomar uma resolução
inabalável, apruma-se, muito alta, dominadora, e diz:
– António, se isso aqui ficar
eu saio hoje mesmo de casa. Escolhe.
Toda a gente da aldeia que enche a venda sabe que ela fará o que acaba de dizer. Até o vendedor pressente
que assim será. Pensativo, olha para o Batola. De súbito, tira um papel
qualquer de dentro da pasta e adianta-se:
– Bem, a senhora não se exalte.
Faz-se uma coisa: a telefonia fica à experiência, durante um mês. Se não
quiserem, devolvem-na; nós devolvemos as letras. Assine aqui, Sr.
Barrasquinho. Pronto. Agora já a senhora pode ficar descansada.
– Mas – pergunta ainda a mulher – quanto se paga de aluguer
por esse mês?
– Nada! – responde o homem, de novo risonho. – Por isso não se
paga nada!
E, ao meter os papéis dentro da pasta, repara que já é muito
tarde.
Apressado, conta que veio por ali devido a um engano no
caminho. Sai da venda, entra no carro, e diz ao Batola, aproveitando o ruído
do motor:
– Você, agora, arrume a questão: tem um mês para a convencer.
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Relação entre as personagens:
Comerciante e Batola:
- o vendedor fala com Batola de forma descontraída,
estabelece uma aproximação com ele, de modo a garantir a venda da telefonia
Recurso ao discurso direto:
- dá destaque à personagem –
vendedor;
- o tempo da narração é equivalente
ao tempo da ação = eficácia do discurso e modo como determina a decisão de
Batola;
- imprime vivacidade e verosimilhança ao texto narrativo
Relação entre as personagens:
Comerciante e a mulher de Batola:
- ao perceber a reação negativa da mulher de Batola,
o vendedor dirige-se a ela de modo mais formal, pois percebe que ela é quem
decide
Relação entre as personagens:
Batola e mulher:
- alteração no relacionamento do casal – Batola
decide tomar uma decisão contrária à da mulher, desafiando-a. Esta situação
coloca em causa a autoridade dela
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Mal o carro parte, deixando uma nuvem de poeira à retaguarda,
atira a pasta para o assento de trás, e grita alegremente:
– Hem, Calcinhas! Levou-me uma tarde inteira, mas foi. Foi de
esticão!
De facto, era sol-posto,
pelos atalhos, os ceifeiros recolhiam à aldeia.
Mas,
nessa tarde, vieram
todos à venda, onde entraram com um olhar admirado. Uma voz forte,
rápida, dava notícias da guerra.
Só de lá saíram depois de a voz se calar. Cearam à
pressa, e voltaram. Era já alta noite quando recolheram a casa,
discutindo ainda, pelas portas, numa grande animação.
Um sopro de vida paira agora sobre a aldeia. Todos
sabem o que acontece fora dali. E sentem que não estão já tão distantes as suas pobres
casas. Até as mulheres vêm para a venda depois da
ceia. Há assuntos
de sobra para conversar. E grandes silêncios quando aquela voz
poderosa fala de cidades conquistadas, divisões vencidas, bombardeamentos,
ofensivas. Também silêncio para ouvir as melodias que vêm de longe até à
aldeia, e que são tão bonitas!...
Acontece até que, certa
noite, se arma uma festa na venda do Batola. Até
as velhas dançaram ao som da telefonia. Nos intervalos, os homens bebiam um
copo, junto ao balcão, os pares namoravam-se, pelos cantos. Por fim, mudou-se de posto para ouvir as
notícias do mundo. Todos se quedaram, atentos.
– Ah! – grita de repente
o Batola. – Se
o Rata ouvisse estas coisas não se matava!
Mas ninguém o compreende,
de absorvidos que estão.
E os dias passam agora rápidos para
António Barrasquinho, o Batola. Até começou a levantar-se cedo e a aviar os fregueses de
todas as manhãzinhas. Assim, pode continuar as conversas da
véspera. Que o
Batola é, de todos, o que mais vaticínios faz sobre as coisas da guerra.
Muito antes do meio-dia já ele começa a consultar o velho relógio, preso por
um fio de ouro ao colete.
Só a mulher quase deixou de aparecer na
venda. E ninguém sabe que pensa ela do que contam as vozes
desconhecidas aos homens da aldeia, pois, através do tabique de ripas
separadas por grandes fendas, ouve-se tudo que se passa na venda. Ouve-se e
vê-se, querendo, a alegria que certas notícias trazem aos ceifeiros,
o gosto e o propósito que eles têm ao ouvir determinada voz que é de todas a
mais desejada e acreditada.
E os dias custaram tão pouco a passar que o
fim do mês caiu de surpresa em cima da aldeia da Alcaria. Era já
no dia seguinte que a telefonia deixaria de ouvir-se. Iam todos, de novo,
recuar para muito longe, lá para o fim do mundo, onde sempre tinham vivido.
Foi a primeira noite em
que os homens saíram da venda mudos e taciturnos. Fora esperava-os o negrume fechado.
E eles
voltavam para a escuridão, iam ser, outra vez, o rebanho que se
levanta com o dia, lavra, cava a terra, ceifa e recolhe vergado pelo cansaço
e pela noite. Mais nada que o abandono e a solidão. A esperança de
melhor vida para todos, que a voz poderosa do homem desconhecido levava até à
aldeia, apagava-se nessa noite para não mais se ouvir.
Dentro da venda, o Batola está
tão desalentado como os ceifeiros. O mês passou de tal modo veloz que se
esqueceu de preparar a mulher. Sobe ao balcão, desliga o fio e arruma o aparelho. Um pouco dobrado
sobre as pernas arqueadas, com o chapeirão a encher-lhe a cara de sombra,
observa magoadamente a preciosa caixa.
Assim está, quando um pressentimento o obriga a voltar a
cabeça: junto da porta que dá para os fundos da casa, a mulher olha-o com um ar submisso. “Que terá acontecido?”, pensa o Batola,
admirado de a ver ainda levantada àquela hora.
– António – murmura ela, adiantando-se até ao meio da venda. –
Eu queria pedir-te uma coisa...
Suspenso, o homem aguarda. Então, ela desabafa,
inclinando o rosto ossudo, onde os olhos negros brilham com uma quase
expressão de ternura:
– Olha... Se tu quisesses, a
gente ficava com o aparelho. Sempre é uma companhia neste deserto.
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2º momento – Convivialidade – após a
chegada da telefonia, todos os habitantes dirigem-se, ao fim de um dia de
trabalho, à venda de Batola, onde convivem e ouvem notícias e canções.
Sentimentos despertados pela telefonia junto dos habitantes da
aldeia:
- o convívio entre os habitantes de Alcaria renasceu, motivo
pelo qual o sentimento de isolamento se dissipou. A alegria voltou à aldeia e
com ela a noção de passagem do tempo também se alterou – “os dias passam
agora rápidos”
Repetição da preposição “até” reforça os acontecimentos pouco
expectáveis fomentados pela presença da telefonia – as mulheres saem à noite
para estarem na venda a conviver, as velhas dançam e o Batola tem vontade de
trabalhar
Metáforas – salientam a constatação de que os habitantes voltariam
a sentir o isolamento e a solidão que lhes eram característicos antes da
chegada da telefonia. Mais uma vez, iriam sentir que estavam “muito longe”,
no “fim do mundo” e que só lhes restava “o abandono e a solidão”
Atitude da mulher do Batola:
- com humildade, faz um pedido ao
marido, mostrando estar em sintonia com ele, já que assume a importância da
telefonia na vida deles e da aldeia
|
Função da peripécia inicial e final
· Funções da peripécia inicial:
o desencadear a ação (elemento que conduz à sucessão
de peripécias que culminarão na peripécia final);
o contribuir para a representação do espaço sociopolítico:
a abordagem do vendedor evidencia o confronto de interesses e de posições
sociais (entre os que têm e os que não têm) e realça o estatuto das classes
populares (em que se inclui Batola) como vítimas da violência social.
· Funções da peripécia final:
o acontecimento imprevisível
que altera o rumo dos acontecimentos (decisão de manter a telefonia, pois é uma
“companhia” num espaço de solidão no microcosmos da aldeia). A decisão
de manter a telefonia sugere a necessidade de convivialidade, de contacto com o
exterior (contrariando o isolamento e a solidão anteriormente vividas), e de
conhecimento da realidade sociopolítica; em última análise, sugere a pulsão
libertadora e a possibilidade de emancipação face à opressão vivida (trata-se
do germe de uma transformação).
Sequências
Sequência descritiva
Segmento textual
“Muito alta, grave, um rosto ossudo e um sossego de maneiras que se vê logo que é ela quem ali põe e dispõe.”
Fases/etapas
Marcas linguísticas nos exemplos dados
Nomes, adjetivos; recursos expressivos (metáfora).
Sequência dialogal
Segmento textual
“– Tem cerveja? [...] – Aqui é Londres, hem! – grita o homem. – O senhor sabe ler? Então leia aqui!”
Fases/etapas
Sequência de abertura (“– Tem cerveja?”), núcleo da interação (restantes falas).
Marcas linguísticas nos exemplos dado
Fórmula de abertura (“– Tem cerveja?”), formas de primeira e terceira pessoa (“Dou-lhe” – nota: tratamento pela terceira pessoa).
Sequência narrativa
Segmento textual
“Por fim, mudou-se de posto para ouvir as notícias do mundo. Todos se quedaram, atentos.”
Fases/etapas
Avanço na ação, relato de uma sucessão de evento.
Marcas linguísticas nos exemplos dados
Pretérito Perfeito do Indicativo
Ideias-chave
·
Retrato económico e sociocultural do Alentejo na
primeira metade do século XX;
·
O título do conto anuncia um novo meio de comunicação
que vai mudar a vida de uma população deprimida, no contexto da II Guerra Mundial;
·
A intriga é simples e é contada de forma linear;
·
O espaço exterior representa os sentimentos negativos
do protagonista;
·
O refúgio em comportamentos antissociais e a
desistência da vida perpassam ao longo do conto, assim como as relações
afetivas conturbadas;
·
O conto permite uma reflexão sobre a condição humana,
que excede os limites temporais da ação.
Síntese
A
intriga
|
· Peripécia
banal: um engano de percurso leva um vendedor a Alcaria.
· Isolamento
geográfico da aldeia e ausência de comunicação: abandono, solidão e
desumanização da população.
· Chegada
do novo aparelho: a radiotelefonia.
· Ligação
ao mundo: música e notícias.
· Alteração
de comportamentos: devolução da humanidade.
|
O espaço
|
o
Aldeia de Alcaria: “quinze casinhas
desgarradas e nuas”.
o
Estabelecimento do casal Barrasquinho: “a
venda” é um local onde reina o desleixo.
o
“Fundos da casa”: espaço de habitação
sombrio separado da venda.
o
Locais “longínquos” por onde viajava Rata:
Ourique, Castro Marim, Beja.
|
O tempo
|
§ Tempo
histórico: anos 40 do século XX (referência à eletricidade e à telefonia).
§ Passagem
do tempo condensada: “há trinta anos para cá”, “todas as manhãzinhas”.
§ Tempo
sintetizado: da chegada do vendedor à partida do vendedor e prazo de entrega
do aparelho – um mês.
|
As
personagens
|
¨ António
Barrasquinho, o Batola: preguiçoso, improdutivo, sonolento, bêbado, bate na
mulher. Tem nome e alcunha (típico no Alentejo). Usa uma indumentária própria
do homem alentejano. A morte de Rata agudiza a sua solidão.
¨ A mulher do Batola: expedita, dominadora e
trabalhadora. Não tem nome.
¨ Rata:
companheiro de Batola, mendigo e viajante, é o mensageiro do exterior.
Suicidou-se quando deixou de poder viajar.
¨ Caixeiro-viajante:
vendedor de aparelhos radiofónicos, comerciante e amigo de vender.
¨ Homens
de Alcaria: “figurinhas” metaforicamente aparentadas com gado.
|
O
narrador
|
Þ O
narrador de terceira pessoa narra os acontecimentos, comenta, conhece o
passado e o mundo interior das personagens (presença: não participante; ponto
de vista: subjetivo; focalização: omnisciente)
Þ O
narrador centra a atenção do leitor no abandono e solidão sentidos pelos
protagonista.
Þ O
narrador conhece os pensamentos de Batola e desvenda como se vão formando: o
desgosto leva-o a fechar-se num mundo de evocações.
|
A atualidade
|
v Isolamento
e falta de convivialidade.
v Relações
entre homem e mulher.
v Vícios
sociais: o alcoolismo, a violência doméstica.
v As
inovações tecnológicas e alterações de hábitos sociais.
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