Mário de Carvalho -
“As famílias
desavindas”
Linguagem,
estilo e estrutura:
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História pessoal e história social: as
duas famílias.
Valor simbólico dos marcos históricos
referidos.
A dimensão irónica do conto.
A importância dos episódios e da peripécia
final.
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O conto: unidade de ação; brevidade narrativa;
concentração
de tempo e espaço; número limitado de personagens;
A estrutura da obra;
Discurso
direto e indireto;
Recursos expressivos.
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Por uma
dessas alongadas ruas do Porto, que sobe que sobe e não se acaba, há de
encontrar-se um cruzamento alto, de esquinas de azulejo, janelas de
guilhotina, telhados de ardósia em escama. Faltam razões para flanar por esta
rua, banal e comprida, a não ser a curiosidade por um insólito dispositivo conhecido
de poucos: os únicos semáforos do mundo movidos a pedal, sobreviventes a
outros que ainda funcionavam na Guatemala, no início dos anos setenta.
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Houve
muitos candidatos ao cargo de semaforeiro, embora um equívoco tivesse levado
à exigência de que os concorrentes soubessem andar de bicicleta. A realidade
corrigiu o dislate porque acabou por ser escolhido um galego chamado Ramon, que era familiar do proprietário dum bom restaurante e nunca tinha
pedalado na vida*. Mas Ramon era esforçado, cheio de
boa vontade. A escolha foi acertada.
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Os
transeuntes e motoristas do Porto apreciam estes semáforos manuais, porque é sempre possível personalizar a
relação com o sinal1. Diz-se, por
exemplo, «Ó Paco, dá lá um jeitinho!» e o Paco,
se estiver bem-disposto, comuta, facilita.
Acontece que, mesmo à esquina, um primeiro andar vem
sendo habitado por uma família de médicos que dali faz consultório. Pouco
antes da instalação dos semáforos a pedal, veio morar o doutor João Pedro Bekett, pai de filhos e médico singular. Chegou de Coimbra com boa
fama mas transbordava de espírito de missão. Andava pelas ruas a interpelar
os transeuntes: «Está doente? Não? Tem a certeza? E essas olheiras, hã? Venha
daí que eu trato-o.» E nesta ânsia de convencer
atravessava muitas vezes a rua. O semáforo complicava. Aproximou-se do Ramon e
bradou, severo: «A mim, ninguém me diz quando devo atravessar uma rua. Sou um
cidadão livre e desimpedido.» Ramon entristeceu. Não gostava que interferissem com o seu
trabalho e, daí por diante, passou a dificultar a passagem ao doutor. Era caso para inimizade. E eis duas famílias desavindas.
Felizmente, nunca coincidiram descendentes casadoiros. Piora sempre os
resultados.
Ao Dr.
Pedro sucedeu o filho João, médico muito modesto. Informava
sempre que o seu diagnóstico era provavelmente errado. Enganava-se, era um facto.
Mas fazia questão de orientar os pacientes para um colega que desse uma
segunda opinião. Herdou o ódio ao semáforo e passava grande parte do tempo à
janela, a encandear Ximenez com um espelho colorido.
Já entre o
jovem médico Paulo e Asdrúbal quase se chegou a
vias de facto. O médico passava e rosnava «Sus, galego». E Asdrúbal, sem parar de dar ao pedal: «Xô, magarefe!» Uma tarde, Asdrúbal levantou
mesmo a mão e o doutor encurvou-se e enrijou o passo.
Este Dr.
Paulo era muito explicativo. Ouvia as queixas dos doentes, com impaciência, e
depois impunha silêncio e começava:
— As doenças são provocadas por vírus ou por bactérias. No
primeiro caso, chamam-se viróticas, no segundo, bacterianas.
E estava
horas nisto, até o doente adormecer. Colegas maliciosos sustentavam que ele praticava a terapia do
sono. Mas a maioria dos doentes gostava de ouvir
explicar. Alguns até faziam perguntas. Após a consulta, muito à puridade, o
Dr. Paulo pedia aos clientes que passassem pelo homem do semáforo e lhe
dissessem: «Arrenego de ti, galego!» Isto foi
assim com Asdrúbal e, mais recentemente, com Paco.
Há dias,
vinha do almoço o Dr. Paulo com uma trouxa de ovos na mão, e já trazia
entredentes o «arrenego!» com que insultaria o semaforeiro, quando aconteceu
o acidente. Ao proceder a um roubo por esticão, um jovem que vinha de mota
teve uns instantes de desequilíbrio, raspou por Paco e deixou-o estendido no
asfalto. Era grave. O Dr. Paulo largou ódios velhos, não quis saber de mais
nada e dobrou-se para o sinistrado:
— Isto, em matéria de lesões, elas podem ser provocadas por
três espécies de instrumentos: contundentes, cortantes, ou perfurantes.
Uma ambulância levou o Paco antes que o doutor tivesse entrado no
capítulo das «manchas de sangue»*.
Enganar-se-ia
quem dissesse que o semáforo ficou abandonado. Uma figura de bata branca está todos os dias naquela rua, do
nascer ao pôr do Sol, a acionar o dispositivo, pedalando, pedalando, até à
exaustão. É o Dr. Paulo cheio de remorsos, que quer
penitenciar-se, ser útil, enquanto o Paco não regressa.
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Narração da origem dos semáforos e localização
do aparelho – Introdução- contextualização
relativa aos semáforos da rua Fernão Penteado
* Crítica à ação corrupta dos governantes
Descrição do equipamento dos semáforos e
do seu funcionamento –
Desenvolvimento – apresentação das personagens e narração das peripécias
associadas à relação conturbada entre elas
Relato do processo de seleção do
primeiro semaforeiro
Sumário relativo às pessoas que
desempenharam o cargo de semaforeiro até ao presente da enunciação
Os marcos
históricos legitimam a verosimilhança da narrativa e assinalam a passagem do
tempo. Os conflitos referidos podem também remeter para a evolução da relação
entre as famílias
Descrição da relação atual entre semaforeiro,
motoristas e transeuntes
Apresentação do primeiro médico e da
origem da discórdia com os semaforeiros
1crítica ao recurso ao favor/cunha
Exposição das relações conflituosas
entre médicos e semaforeiros.
Os
semaforeiros estão ligados pelo “amor à profissão”, partilham as mesmas
características, atuam do mesmo modo, sem especificidades individuais.
Os
médicos estão ligados pelo “ódio ao semáforo” e são as suas particularidades
que desencadeiam e perpetuam o conflito
*Caracterização humorística da personagem (discurso indireto)
Narração do acidente e da reconciliação
das “famílias desavindas”
Discurso direto – nem sempre surge em
forma de diálogo, mas sim como uma reprodução de uma fala que caracteriza
indiretamente as personagens (graficamente, o discurso direto é apresentado
de duas formas)
– Conclusão – desfecho inusitado da história: a reconciliação das famílias.
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Os
episódios relatados ilustram a origem dos conflitos entre semaforeiros e
médicos, sendo que a peripécia final dá a conhecer a reconciliação entre estas
famílias através da atuação do Dr. Paulo que acaba com a quezília.
Ideias-chave
·
O conto apresenta marcos históricos temporais que
constituem eventos marcantes da nossa cultura (dois conflitos mundiais e a
revolução do 25 de abril de 1974);
·
A intriga estabelece um paralelo entre dois grupos
sociais que se opõem em cada um dos marcos históricos (exploração das relações
humanas, relações ibéricas e estereótipos sociais);
·
Os diversos semaforeiros constituem uma personagem
coletiva que se caracteriza pelo amor incondicional aos semáforos (“pelo amor à
profissão”);
·
O texto fixa breves episódios que marcam o confronto
entre médicos e semaforeiros;
·
O narrador recorre, frequentemente, à paródia,
apostando na inversão irónica de códigos e de convenções com distanciamento
crítico;
·
O inusitado início transfigura-se na conclusão do
conto: o acidente propicia a reconciliação das duas famílias.
Síntese
A
intriga
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· Peripécia
banal: um invento insólito e “provisório” nas ruas labirínticas da cidade do
Porto.
· Retrospetiva
do cargo “hereditário” de semaforeiro até à atualidade
· Acontecimento
imprevisto: acidente de Paco
· Conclusão
inusitada
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O espaço
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o
Alusões à cidade do Porto: “Rua Fernão
Penteado, na interseção com a travessa de João Roiz de Castel Branco”
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O tempo
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§ Tempo
histórico: desde o século XIX, período entre a I e a II Guerras Mundiais até
à atualidade: “pouco depois da revolução de abril”
§ Passagem
do tempo condensada: “durante anos e anos”
§ Tempo
sintetizado: do século XIX ao século XXI
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As
personagens
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¨ Gerard
Letelessier: engenheiro francês fracassado tem sucesso no Porto com uma
invenção inútil.
¨ Um
autarca do Porto: símbolo de todos os autarcas da província; deslumbrado por
um projeto estrangeiro.
¨ Os
transeuntes e motoristas do Porto: representantes do gosto pelo facilitismo.
¨ Ramon: primeiro semaforeiro; pertence à geração da I Guerra
Mundial.
¨ Dr. João Pedro Beckett: “pai de filhos e médico singular” com
elevado “espírito de missão”.
¨ Ximenez: filho de Ramon, segundo semaforeiro, pertencente à
geração da II Guerra Mundial.
¨ Dr. João: é um “médico muito modesto”.
¨ Asdrúbal: filho de Ximenez, terceiro semaforeiro, pertencente
à geração de 1974.
¨ Dr. Paulo: médico filho do Dr. João, adormecia os doentes com
explicações.
¨ Paco: bisneto de Ramon, quarto semaforeiro, pertence à geração
do início do século XXI; sofre um acidente.
¨ Dr. Paulo: assume o posto de Paco para se redimir.
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O
narrador
|
Þ O
narrador de terceira pessoa narra os acontecimentos, comenta, conhece o
passado e o mundo interior das personagens (presença: não participante; ponto
de vista: subjetivo; focalização: omnisciente)
Þ Retoma o
passado para criticar o presente.
Þ Centra a
atenção do leitor no quotidiano insólito.
Þ Parodia,
de forma irónica, atitudes e comportamentos banais da sociedade portuguesa
atual, mas que se arrastam no tempo.
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Dimensão
paródica: a atualidade da ironia
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v O
provincianismo português.
v As
invenções inúteis.
v A
atribuição duvidosa de cargos públicos.
v O
deslumbramento nacional pelo estrangeiro.
v As
relações ibéricas.
v As
relações humanas.
v Os
estereótipos sociais.
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